PREZADOS PAIS,
Se você está lendo esta carta você de alguma maneira está em um caminho similar pelo qual nós passamos. Há cerca de uns 15 anos lemos um texto que fazia uma analogia entre o nascimento de um filho com deficiência e uma viagem não planejada a Holanda. Referia-se aos muitos preparativos para uma fabulosa viagem para a Itália e à surpresa da viajante com a aterrissagem na Holanda, por força de uma mudança no plano de voo.
Embora seja certo que detalhes da viagem para a Itália podem não ocorrer dentro do planejado, é certo também que a chegada à Holanda – entre tantos outros lugares possíveis –, em vez da Itália, impõe um reelaborar do planejamento e novas aprendizagens para esse não menos belo lugar, mas efetivamente diferente destino. A comparação guarda certa identidade com o nascimento da nossa filha Jéssica. Tínhamos 27 e 30 anos à época e nossa expectativa com o nascimento do primeiro filho era grande. A comunicação da suspeita da trissomia do cromossomo 21 somente ocorreu à saída do hospital e gerou em nós uma enorme apreensão, principalmente por desconhecermos totalmente a denominada síndrome de Down. Isso porque vivemos em uma época em que a convivência com pessoas com deficiência na comunidade não era comum.
Passado um primeiro período de muitos questionamentos sobre o porquê da ocorrência genética, entendemos que Jéssica era o presente que a vida havia nos dado. Cabia-nos, então, ultrapassar dois grandes desafios: o primeiro, o de buscar informações – extremamente escassas à época – imprescindíveis a assegurar o seu desenvolvimento e o segundo, o de buscar contribuir para tornar a sociedade inclusiva, solidária, acolhedora, generosa, justa e igualitária, que valoriza as diferenças e reconhece a riqueza da diversidade, afinal, seria esse o espaço em que ela cresceria. Embora essa sociedade seja um tanto utópica, seguimos perseguindo sua concretização, porque a utopia serve, no dizer de Galeano, justamente para nos fazer caminhar.
O maior conhecimento que adquirimos, naquela fase da vida, foi o de que aquele bebê, singular e único, antes de tudo, era simplesmente nossa filha! Aprendemos também que, entre as diferentes intervenções precoces de que necessitava – como fonoaudiólogo/a e terapeuta ocupacional –, a mais importante era a vivência com a família no dia a dia, o cuidado que lhe dispensávamos, o amor que lhe dedicávamos, a estimulação sensorial ampla que lhe proporcionávamos nas viagens, nos passeios ao parque, nas visitas aos/às amigos/as, nas idas ao mercado, ao shopping, à igreja, ao teatro, às festas, ao clube. Descobrimos que, se acreditássemos no potencial existente nela, o retorno do tempo e esforços investidos em prol do seu crescimento seria certo. Nesse sentido, sempre buscamos oferecer à Jéssica todas as oportunidades possíveis para que ela aproveitasse aquelas que lhe eram viáveis no momento. Essas oportunidades se traduziram na escolha de uma escola regular, no incentivo à participação na comunidade, no estímulo à realização de atividades extracurriculares, no apoio à decisão dela de seguir estudando após o ensino médio, no incentivo ao ingresso no mercado de trabalho e no “empoderamento” para o exercício dos seus direitos.
Jéssica tem hoje 26 anos e se vê incluída em diversos espaços sociais. Concluiu aos 21 anos o curso superior tecnológico de Fotografia e exerce essa atividade, entre outras, na Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência desde 2013. Em uma parte do tempo livre, realiza palestras sobre inclusão e participação social e divulga seu livro de fotografias Asas e Flores. Noutra parte, faz as mesmas atividades comuns à maioria das pessoas, como ir à academia, ouvir música, navegar na internet e sair com os/as amigos/as. Quem sabe um dia encontrará alguém com quem deseje dividir sua vida, sua história, seus sonhos.
Em uma retrospectiva breve do caminho trilhado, percebemos o quão rica tem sido a jornada, repleta de muitos desafios e dificuldades, mas também de inúmeras vitórias e conquistas. À Jéssica, nosso amor eterno pelo muito que nos ensina dia após dia, por toda a força que nutre em nós em todo o tempo, pela motivação diária para percorrermos caminhos inimagináveis, quebrarmos preconceitos e rompermos barreiras, pelas amizades que não faríamos em outras estradas e pela oportunidade de construirmos pontes por onde passamos. Fez-nos gigantes, quando pequenas as expectativas, e encheu-nos de esperança, quando nada parecia valer a pena.
A Deus, nossa gratidão pela fé que nos impulsionou a continuar a caminhada, sem nunca desistir. A você, que recentemente se tornou mãe ou pai de uma criança com a trissomia do cromossomo 21, se olhar bem dentro dos olhos do/a seu/sua filhinho/a, descobrirá o mundo inexplorado que há neles e os muitos caminhos a serem trilhados. Então, curtir a viagem é uma boa alternativa !
Com muito o carinho,
Ana Cláudia e Guilherme ( pais da Jéssica Mendes)
Fonte: Cromossomo21